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Borrego agridoce para a mesa três!

Enquanto expressamos a nossa sinofobia sobre a proveniência da COVID-19 e andamos preocupados com as excentricidades alimentares dos chineses, esquecemo-nos que o Pingo Doce, na televisão generalista, promove borrego a 3,99€/kg, com honras de fala da CEO da empresa. Que relação têm os hipermercados ocidentais com os mercados urbanos asiáticos? Tudo. Ora vejamos.

Uma ida à loja online do Continente revela-nos que, naquele outro megasuperhiper-mercado, a carne de um borrego inteiro com 5kg, em promoção, custa 8,99/kg (1): mais do dobro de que no Pingo Doce. O bicho, inteiro, custar-nos-ia quase 50€, mas o preço era maior, rondava 74€; esta diferença já deve espelhar a concorrência e os eventuais desajustes entre a oferta e a procura. Repito: numa outra linha de distribuição alimentar. Uma notícia do Diário de Notícias de 2019, indica-nos que o preço do borrego vivo era de 2,80€/kg (2). Confesso que não conheço o seu preço justo e não percebo nada de pecuária nem de retalho, contudo acompanhem-me nesta viagem: o filhote da ovelha com um mês, como habitualmente comemos na Páscoa e a que chamamos borrego, pesa, em regra, 5 ou 6kg (3). Nada comparado com o tamanho de uma vaca, é certo, mas este animal teve que ser alimentado por alguém- nós somos o que comemos e os animais também; depois, alguém terá tido a tarefa de gastar dinheiro em negociar a distribuição do produto; outro alguém terá transportado o bicho, gastando-se mais dinheiro em logística, combustíveis e salários; alguém terá descarregado o animal e outro alguém está na loja dizendo "bom dia" e "obrigado". Esta cadeia é certamente muito mais extensa e complexa que este quadro simplista que a minha ignorância tentou traçar, mas o destino do produto é sempre o mesmo: o consumidor; o que ouve a publicidade na televisão e que o escolhe na vitrine e leva para sua casa. É esta a nossa responsabilidade. O leitor dir-me-á: “ A publicidade custa dinheiro”. É verdade. E outros dir-me-ão: “Ah, mas eles vendem o borrego a esse preço para atrair clientes a comprar outras coisas”. Também é verdade e faz tudo parecer (ainda) mais desonesto. A cadeia da produção, distribuição e retalho é a cadeia do anonimato e do silêncio; não enfrentamos nenhum dos intervenientes para além do funcionário que nos ajuda a comprar e aquele que recebe o nosso dinheiro. Até a esses, damos mais silêncio e anonimato num cumprimento desinteressado e performático. O mesmo acontece noutros setores: alimentação, vestuário ou alojamento – e isto apenas para falar na tríade da nossa sobrevivência enquanto espécie.

Voltando ao borrego. Ora, o que tem, então, que ver o bicho vendido no Pingo Doce com os animais exóticos comprados nos mercados chineses que provocam as "nossas" pandemias? Tudo. Os dois comportamentos espelham o mesmo pensamento errático e virulento que, para cumprir os desejos do nosso consumo e abastecer as cidades altamente especializadas em produzir serviços, desorganiza e destrói sucessivamente os diversos ecossistemas com que se cruza: o animal é maltratado para crescer rápido e o seu desenvolvimento acelerado baseado em produtos nocivos para o ambiente polui os solos, a água e a atmosfera; o produtor recebe o que o grande retalhista ordena, e paga, como consequência, o que pode aos seus funcionários; o planeta volta a ser fustigado pelos transportes e os trabalhadores recebem outras ninharias pelos sucessivos cruzamentos por onde o produto vem e vai. Neles, cruzam-se muitas famílias e a educação dos seus filhos - o futuro das nossas gerações. Não incluí, a montante, os desequilíbrios causados pela produção das rações ou dos medicamentos usados para proteger os animais das doenças. No final da cadeia, ainda tem que sobrar dinheiro para a publicidade, porque o excedente engrossará sempre as grandes fortunas do setor alimentar que crescem, nos países mais pobres, ao ritmo das crises.

Tive uma educação no campo e cresci num ambiente minimamente saudável. Ainda hoje as minhas sobrinhas tocam em pintainhos pequeninos e brincam com ovelhas. A minha família encomendava cabritos e os borregos aos produtores locais; lembro-me de os ir buscar à terra-natal da minha avó. Comemos aquela carne na Páscoa, num ritual civilizacional, mas cresci a saber que aquela era uma carne cara e, por isso, festiva. Já não somos caçadores-recolectores, mas temos obrigação de desenvolver noção crítica em relação ao que consumimos em troca do que produzimos, e vice-versa. Os chineses não devem comer animais exóticos, porque isso obriga-os a invadir ecossistemas que não são seus por direito. O mercado exótico é milionário e, como movimenta milhões, ninguém acaba com ele nem demonstra coragem de o disciplinar. O Pingo Doce, como nos relembra a campanha dos 50% no dia do trabalhador, utiliza práticas desleais na fixação de preços, como dumping (4). Ninguém quer saber.

As cidades mais afetadas pela COVID-19 são as de maior dimensão ou aquelas que mais se expõem às cadeias de circulação da economia global. A culpa não é dos chineses; a culpa é nossa e do modelo de desenvolvimento que criamos e alimentamos com as nossas práticas. A CEO do Pingo Doce acena com o borrego a 3,99€ aos clientes; lança a esmola aos produtores nacionais que lhe revendem ao desbarato a produção que não conseguem escoar de outra forma; atribui um extra de 500€ aos funcionários e manda-os ficar em casa num domingo num ano que, como os demais, não costuma conhecer feriados nem dias santos. O ritmo é rápido – do borrego, do trabalhador, do produtor, do transportador e do consumidor. No início deste ano, num curso sobre história dos hospitais, um especialista dizia que o problema da relação do SNS com o utente tinha que ver com o tempo. Eu tinha concluído, há muito e por dedução, o mesmo em relação ao consumo de moda, às viagens, à internet e ao fenómeno das redes sociais. Depois, veio uma pandemia que, por causa de um animal exótico comido por um excêntrico, nos obrigou a parar. Contudo, o tempo continua à mesma velocidade, como nos lembra a CEO do Pingo Doce nas nossas televisões. A pandemia da saúde parece demonstrar sinais de abrandamento, mas as outras epidemias continuam, e marcham, aceleradas.

Luís Gonçalves Ferreira




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